UM
ANO SEM HUGO RAFAEL CHÁVEZ FRÍAS - Há exatamente um ano, precisamente
no dia 05 de março de 2013, recebemos um triste informe, capaz de abalar
o noticiário em nível latino-americano e mundial. O falecimento de Hugo
Rafael Chávez Frias despertou apaixonadas discussões sobre sua história
e seu legado. Destaque-se, então, a história dele na Venezuela.
Hugo Rafael Chávez Frias era militar de origem, e bebeu nas fontes do
Movimento Bolivariano presente nos países andinos e caribenhos,
existente há muitas décadas. Notadamente na Venezuela, podemos afirmar
que o Movimento consolida-se a partir do nascimento do EBR 200 (Exército
Bolivariano Revolucionário), em 1977. O EBR 200 admitia em suas
fileiras apenas militares. Pouco tempo depois, em 1983, o tenente
coronel Hugo Rafael Chávez Frias cria o MBR 200 (Movimento Bolivariano
Revolucionário), evolução do EBR 200 e que passou a admitir em suas
fileiras civis e militares.
O movimento bolivariano, muito
enraizado no pensamento popular da Colômbia e da Venezuela, remete, por
óbvio, aos movimentos de independência política ocorridos na América do
Sul há cerca de 200 anos. Reivindicam-se enquanto herdeiros políticos do
libertador Simon Bolívar, nascido na própria Venezuela, e propugnam
pelo que chamam de segunda independência sulamericana.
Entendem
que os países sulamericanos vivem espoliados pelo imperialismo que
surrupia riquezas naturais e mantém na pobreza, no abandono e na
ignorância os povos dessas nações, contando, para tanto, com a
subserviência das elites econômicas de cada país, que preferem, sempre,
garantir seus lucros antes de pensar no desenvolvimento econômico e
social de suas gentes.
É sabido que em fins dos anos 70 o mundo
ainda vivia no contexto da Guerra Fria, certo também é afirmar que o
Chile de Salvador Allende, primeiro presidente socialista eleito pelo
voto popular nas Américas, sofreu um brutal golpe de estado em 11 de
setembro de 1973 e ali foi testado, de forma cruel, brutal e assassina,
os parâmetros da Escola de Chicago. O Chile do golpista Augusto Pinochet
foi o laboratório do neoliberalismo que viria a tornar-se hegemônico
quando da queda do Muro de Berlim, em 1989, e subsequente desintegração
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em dezembro de 1991.
Antes desses episódios, podemos afirmar que a ascensão de Karol Wojtyła
enquanto Papa (Papa João Paulo II) em 1978, bem como a eleição de
Margaret Thatcher no Reino Unido em 1979 e a eleição de Ronald Reagan
nos EUA em 1980 foram fatores decisivos para conformar o 'novo' mundo
pós Guerra Fria. Não nos esqueçamos também de Mikhail Gorbachev, da
glasnost e da perestroika!
Neste cenário de início dos anos 90 a
nova hegemonia liberal, amplamente vitoriosa e arrogantemente
triunfante mostra a sua face no episódio da Guerra Iraque-Kuwait. Os EUA
lideram, como donos do mundo, uma poderosa coalisão diplomática e
militar que dobra com facilidade inimaginável um Saddam Hussein que fora
aliado do ocidente até 1988, Saddam atuou de forma crucial para conter a
Revolução Iraniana através da cruenta e terrível Guerra Irã-Iraque, que
durou longos oito anos (1980 à 1988).
No Brasil, na Venezuela,
no México, Argentina, enfim, em todos os países sulamericanos, a 'boa
nova' liberal (ou neoliberal) chegava avassaladora como um furacão
incapaz de ser controlado. Fernando Collor de Mello, Carlos Andrés
Pérez, Carlos Salinas de Gortari, Carlos Menem e outros menos cotados
encarregaram-se de abrir as portas e as janelas das nações
latino-americanas ao credo capitaneado pelos vitoriosos da Guerra Fria.
Esses movimentos de abertura indiscriminada das fronteiras econômicas
provocaram um desequilíbrio interno muito grande nos países, viu-se a
recessão, o desemprego, o arrocho salarial e a fome que vicejaram como
há muito não se via. As explosões sociais não tardaram a surgir, em
maior ou menor grau, desde o Rio Grande até a Patagônia.
Especificamente na Venezuela, o descontentamento popular com a abertura
indiscriminada promovida pelo presidente Carlos Andrés Pérez, no início
de 1989, ocasionou trágicas consequências sociais. A convulsão e o
desespero das gentes teve ápice no doloroso episódio chamado 'Caracazo',
ocorrido em fevereiro de 1989. Centenas de mortos e milhares de
feridos, esse foi o saldo que a população venezuelana nunca mais
esquecerá.
É dentro desse caldo de cultura econômica, social e
política que emerge cada vez mais forte a figura de Hugo Rafael Chávez
Frias e de seu MBR 200. Chávez tornou-se figura nacional no país de
Bolívar em 1983, quando expôs suas teses de lançamento do movimento
revolucionário. Não era um desconhecido da população quando do
'Caracazo' e já denunciava as mazelas sociais e a submissão econômica de
seu país ao imperialismo que espoliava todo um povo. Controla-se a
revolta de 1989, mas não a insatisfação popular, que aumenta
exponencialmente ao longo do tempo, em função do tacão imposto por um
dos planos econômicos neoliberais mais ortodoxos que já conheceu a
região.
Em fevereiro de 1992, irrompe a sublevação militar
comandada por Chávez. Fracassam as tentativas de controle do poder e
Chávez é detido, julgado e condenado. Ficaria preso até 1994. Neste
momento de fracasso, por mais incrível que possa parecer, Chávez
tornou-se mais querido entre a população e amalgamou suas teses junto a
grande massa de venezuelanos desalentados pelo chaga neoliberal.
No cárcere, não parou mais de escrever e de gravar vídeos que eram
repassados em todo o país, contendo as teses do movimento bolivariano.
Em novembro de 1992, novamente fracassa uma tentativa de retirar Carlos
Andrés Pérez do poder, feita de forma descoordenada por setores da Força
Aérea Venezuelana. Em 1993, finalmente Carlos Andrés Pérez é apeado da
cadeira presidencial, para alívio dos venezuelanos.
Em 1994
Hugo Chávez sai do cárcere. O dia da saída mais parecia uma cena de
filme hollywoodiano. Centenas, milhares de pessoas o aguardavam em festa
em frente ao presídio. O tenente coronel Chávez aparece, agora liberto,
e sai caminhando entre o povo, sendo abraçado e beijado como um herói.
Inicia uma bateria de viagens internacionais, das quais a mais
significativa foi a feita até Cuba, em dezembro de 1994, onde palestrou
em várias universidades a convite de Fidel Castro.
Renunciou
ali, a pedido de Fidel Castro, da estratégia militar de tomada do poder
pelas armas para iniciar a fulminante estratégia de chegada ao poder
através dos mecanismos tradicionais. Suas bandeiras principais, que
galvanizaram em definitivo a maioria do povo venezuelano, foram a
convocação imediata de uma Assembléia Nacional Constituinte originária, o
fim imediato do neoliberalismo e a construção de uma nova independência
econômica, política e cultural para a Venezuela. O acerto da mudança de
estratégia não tardaria a dar frutos.
Depois de percorrer
dezenas de países e de caminhar incessantemente em todas as partes da
Venezuela, Hugo Chávez finalmente se elege com a chancela do voto
popular e a frente do Movimento V República, em novembro de 1998. Ali
punha-se termo aos longos 40 anos de 'puntofijismo' putrefato.
A
cerimônia de posse do Presidente Chávez foi em fevereiro de 1999 e a
cena não podia ser mais original. No juramento, Chávez quebra o
protocolo e jura da seguinte maneira: "Juro diante de Deus, juro diante
da Pátria, juro diante de meu povo, e, sobre esta moribunda
Constituição, cumpri-la. E impulsionarei as transformações democráticas
necessárias para que a república nova tenha uma Carta Magna adequada aos
novos tempos. Eu juro."
Bem ao estilo surpreendente e desconcertante que marcaria para sempre toda a sua trajetória!
Eleito com 56% dos votos, logo em seu primeiro dia de mandato cumpre
com sua proposta principal de campanha e convoca um plebiscito chamando o
povo a se manifestar sobre a necessidade de convocar uma nova
Assembléia Nacional Constituinte. Com 81% dos votos, a população diz sim
ao processo constituinte, que é então chamado e produz a tão aguardada
Carta Magna adequada aos novos tempos. Essa nova Carta foi sufragada e
aprovada por 71% dos venezuelanos em dezembro de 1999.
Em 2000,
cumprindo os dispositivos da nova Carta, Chávez concorre e vence as
eleições com 59,7% dos votos. Inicia profundas transformações
estruturais como a reforma agrária e a retomada do controle estatal
sobre a companhia petrolífera PDVSA.
Chávez rearticula também o
poder da OPEP, que não se reunia oficialmente desde o ano de 1975 e
que, por injunção política dele, e para desespero do imperialismo
acostumado com o petróleo a preço de bananas, ressurgiu com força a
partir da reunião feita no segundo semestre de 2000, em Caracas. Em
dezembro de 2000, convoca novo plebiscito para modificar a estrutura
sindical do país, vence-o com 62% dos votos. As reações não tardariam.
O descontentamento dos sindicatos de trabalhadores e patronais, somado
as profundas mudanças estruturais impulsionadas e a permanente
referência ao seu amigo pessoal Fidel Castro colocam o país em
polvorosa. Iniciam-se as greves, os locautes e as conspirações militares
abertas e transmitidas ao vivo, exigindo a sua renúncia. Inicia-se o
ano de 2002. Em abril de 2002, tem sequência a tentativa de golpe de
estado contra Hugo Chávez, que fora sequestrado e levado para uma ilha.
Assume o golpista Pedro Carmona, presidente da Federação Industrial,
apoiado pelos remanescentes do sindicalismo cuja estrutura fossilizada
Chávez pulverizou e com o apoio do Departamento de Estado dos EUA.
A indignação e a fúria da população venezuelana veio como um tsunami.
Tiros nas ruas e as emissoras privadas passando desenhos do Pica-Pau e
dizendo que tudo estava sob controle... Em menos de 24 horas, o povo
sublevado e tomado de ira indescritível ocupa as ruas e exige a volta do
Presidente Constitucional. Militares leais dão o contra-golpe e Chávez
volta nos braços do povo. A película "A Revolução Não Será
Televisionada" narra esses acontecimentos com impressionante riqueza de
minúcias e detalhes.
Vencido o golpe, Chávez ainda enfrentaria
uma greve petroleira de mais de 03 meses e um referendo revocatório de
seu mandato, em 2004. Vence o referendo com 59% e ruma para a reeleição
em 2006. Antes, em 2005, a oposição boicota as eleições legislativas e
deixa o parlamento livre para os chavistas até o ano de 2010. Nas
eleições de 2006, Chávez vence com acachapantes 63% dos votos e
consolida o movimento bolivariano depois de oito anos de duras e
renhidas batalhas com a oposição.
Encerro por aqui a apreciação
dos processos eleitorais venezuelanos. Concentrei a avaliação entre
1998 e 2006 porque é neste tempo histórico bem determinado onde se
percebem as principais lutas entre situação e oposição. A partir de
2006, Chávez se consolida, assume o comando pleno do processo político
venezuelano, estabiliza as forças armadas e não é mais ameaçado por
golpes de estado. Cumpre destacar que o PSUV foi criado apenas em março
de 2007, após a consolidação do movimento bolivariano. Feita a breve
digressão histórica, é hora de sair da descrição e passar para a
avaliação.
Hugo Rafael Chávez Frias mudou o eixo da política
venezuelana e latino-americana. Assumiu sozinho a luta anti-imperialista
e anti-neoliberal, tal qual um Dom Quixote, numa conjuntura de terrível
isolamento numa região dominada por governos de orientação submissa aos
dogmas do liberalismo galopante. Seus maiores legados são,
indiscutivelmente, a luta pela superação do modelo neoliberal (que só
restaria completa com a ruína deste modelo em 15 de setembro de 2008) e a
luta incessante pela integração econômica, política, social, cultural e
de infra-estruturas da América Latina, sonho de Simon Bolívar que ele
assumiu enquanto causa maior de sua existência.
É bom salientar
que o sucesso da integração latino-americana jamais teria êxito sem as
eleições de Lula em 2002 e de Néstor Kirchner em 2003. Aos poucos, com
recuos e avanços diversos, vários governos progressistas foram eleitos
em toda a região e a integração passou do plano dos sonhos idílicos para
a possibilidade real.
Frutos dessa luta pioneira de Chávez,
temos hoje a UNASUL, a CELAC, a ALBA, o Conselho de Defesa Sulamericano e
o fortalecimento do Mercosul, consolidado com a entrada da Venezuela
enquanto membro pleno do bloco em 2012. Gostaria, por fim, de lembrar um
pouco sobre o Movimento dos Países Não-Alinhados, surgido nos anos 50,
para se contrapor a dicotomia da Guerra Fria.
Eu diria, em
rápidas palavras, que Hugo Chávez poderia muito bem estar na lista de
grandes personalidades que lutaram antigamente contra o colonialismo,
pela independência econômica dos povos, por soberania e desenvolvimento
social. Eis algumas das personalidades históricas do Movimento: Sukarno,
Jawaharlal Nehru, Mohammed Mossadegh, Gamal Abdel Nasser, Josip Broz
Tito, Fidel Castro, Patrice Lumumba, etc. Não é a toa que todas essas
pessoas são odiadas pelo imperialismo até os dias de hoje.
Hugo
Chávez foi o campeão da integração regional, aspiração que estava
adormecida na América Latina. E foi o campeão da luta anti-imperialista.
Por isso e por várias outras razões, ele já é uma figura histórica de
grande relevo e cuja memória será lembrada por muitas e muitas décadas.
Hugo Chávez honrou antigas tradições de luta por uma política externa
independente, no melhor estilo dos bons tempos do Movimento dos Países
Não-Alinhados.
Fica de Hugo Chávez um legado de soberania e
consolidação dos avanços sociais para o povo venezuelano e um exemplo de
que é possível construir um rumo diferente para os países da América
Latina. E tudo isso feito com ampla democracia e participação popular.
Se Hugo Chávez não deixou uma Carta Testamento, nos moldes da escrita
por Getúlio Vargas, em 1954, podemos dizer que o seu testamento político
é de esperança e de uma profunda visão estratégica, de uma paixão pela
construção da unidade latino-americana e de um fervor sempre renovado em
busca da emancipação de fato e de direito dos povos oprimidos pelas
amarras imperialistas.
Uma grande personalidade, um grande
líder político, pioneiro, arrojado, com grande visão de futuro, e, acima
disso tudo, um grande ser humano, que está marcado para sempre na
memória coletiva das populações de nossa querida América. Este é o
saldo, positivo, da bela existência e da profícua e coerente luta de
Hugo Chávez, luta que tirou a região da letargia, da pasmaceira e que
abriu novos caminhos que precisam cada vez mais ser consolidados.
A luta de Hugo Rafael Chávez Frías não foi em vão, pois é a luta
histórica de milhões de cidadãos e cidadãs de toda a América Latina.
Luta esta, aliás, que o Comandante Bolivariano soube despertar com toda a
energia, como nenhuma outra liderança já houvera feito antes em nossa
região.
O Movimento Bolivariano, ao que parece, não se esgota
com a morte de Chávez, tudo indica que é um fenômeno de alcance mais
profundo, que extrapolou as fronteiras do país caribenho. Cumpre agora
seguir e aprofundar seu legado de soberania e de integração regional.
Neste momento em que assistimos a um recrudescimento do fascismo em
nível mundial, decorrente dos pérfidos efeitos do Crash de setembro de
2008, e que tristemente repete os efeitos políticos do Crash de outubro
de 1929, é preciso reconhecer a imensa falta que está fazendo ao mundo a
figura do Comandante Hugo Rafael Chávez Frías.
Mas façamos como ele, resistamos sem temor!
Viva Chávez! Chávez vive!
Texto de Diogo Costa
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