quarta-feira, 12 de março de 2014

Cosmopolitismo, Identidade e Tecnologia: embates culturais no contemporâneo - Por Angela Prysthon

"Se o cosmopolitismo moderno está ligado ao capitalismo industrial multinacional, o cosmopolitismo pós-moderno se define pelo dispersamento do capital e pela emergência dos mercados transnacionais. O importante é fazer fluir a informação para todos os lugares de forma rápida. O cosmopolitismo pós-moderno, diferente do moderno, está mais vinculado ao desenvolvimento tecnológico da mídia e de novas formas de comunicação do que com a urbanidade e o cotidiano metropolitano. A cidade contemporânea vai sendo determinada pelo imaginário cultural e conceitual do pós-moderno."

 Uma aproximação ao contemporâneo

Uma das transformações mais essenciais no campo cultural nas últimas décadas do século XX parece ser o descentramento — em vários sentidos e não apenas no territorial. Descentramento do sujeito e das identidades provocado pela fragmentação social, descentramento geográfico facilitado pelo desenvolvimento tecnológico e descentramento cultural favorecido pelas tendências multiculturalistas que se intensificam a partir da década de 80. Toda uma gama de processos que redimensiona ou, pelo menos, rediscute o papel da periferia na história.

Tais descentramentos supõem também a dissolução de fronteiras, de heterogeneidade cultural, de interpenetração entre “mundos” e discursos. Mundo tecnológico e mundo natural. “Primeiro” e “Terceiro” mundos. Global e local. Universal e regional.  Metrópoles e aldeias. Ocidente e Oriente. Discursos “originais” e hibridismos. Cânones e margens. Territórios que se sobrepõem uns aos outros, interstícios constantemente ampliados. Não há mais uma separação tão clara entre natureza e técnica, exterior e interior:

 No mundo pós-moderno, entretanto, essa dialética entre dentro e fora, entre ordem civil e natural chegou ao fim. (...) Em um mundo pós-moderno, todos os fenômenos e forças são artificiais, ou, como dizem alguns, fazem parte da história. A dialética moderna do fora e do dentro foi substituída por um jogo de graus e intensidades, de hibridismo, e artificialidade.

 Um encontro, um diálogo tenso entre mundos que às vezes se opõem e às vezes se complementam. Uma política de diferenças vai sendo engendrada por meio de complexas negociações, sobreposições e deslocamentos culturais, como afirma Homi Bhabha:

Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas do desenvolvimento e progresso.

 Cultura e cosmopolitismo

Para se explorar as relações entre tecnologia e cultura, é importante destacar o quanto tais relações são marcadas por uma idéia de cosmopolitismo. Pensar as interfaces da tecnologia na cultura implica em desvendar uma relação com o mundo pretensamente aberta e universal. Nesse sentido vai ser relevante para meu argumento tentar definir alguns modos do cosmopolitismo, uma espécie de preâmbulo conceitual. O primeiro passo para a demarcação desses modos é identificar alguns dos sentidos que circulam em torno a uma noção de cosmopolita/cosmopolitismo. O Dicionário de Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda aponta as seguintes dimensões para os termos:

Cosmopolita[Do grego Kosmopolites] S. 2g. 1. Indivíduo que vive ora num país, ora noutro, adotando-lhes com facilidade usos e costumes. 2. Pessoa que se julga cidadão do mundo inteiro, ou para quem a pátria é o mundo: “Ele tinha viajado em toda Europa..., era um cosmopolita na grande acepção filosófica da palavra, inteiramente lavado de preconceitos de raça e de nação.” (Ramalho Ortigão, A. Holanda, p.241). Adj. 2g. 3. Que passa a vida a viajar em diversos países. 4. Que é de todos os países. 5. Que apresenta aspectos comuns a vários países: São Paulo é uma cidade cosmopolita. 6. Que sofre influência do estrangeiro: mentalidade cosmopolita. 7. Próprio de cosmopolita (1 e 2): costumes cosmopolitas. 8. Bot. Diz-se das espécies que se espalham pela maior parte do globo, espontaneamente.

CosmopolitismoS. m. 1. Qualidade ou maneira de viver de cosmopolita: “O bairrismo do povo contrastava com o cosmopolitismo dos fidalgos” (Antero de Figueiredo, Leonor Teles, p.74). 2. Filos. Atitude ou doutrina que prega a indiferença ante a cultura, os interesses e/ou soberanias nacionais, com a alegação de que a pátria de todos os homens é o Universo.
 As várias acepções apresentadas pelo dicionário aludem a uma espécie de privilégio. Primeiro, da parte do sujeito: o cosmopolita como aquele que não está apenas “fora”, mas “acima” do comum, um indivíduo sofisticado, diferente e capaz de lidar com um repertório mais diverso que a maioria das pessoas. Também no sentido de um lugar que pressuporia todos os outros lugares: uma cidade “universal”, uma metrópole ideal. Tais definições revelam igualmente um valor de contraste. O cosmopolita vai, assim, sendo contraposto ao provinciano; o cosmopolitismo ao bairrismo e ao nacionalismo. Temos, portanto, mesmo nesses significados primeiros do cosmopolitismo/cosmopolita, um sujeito específico que se opõe a uma massa e uma des-territorialização que se opõe à fixidez. Com a oposição à concepção de nação, o cosmopolitismo afilia-se a um ideal universal. Com a negação do provincianismo, contudo, emergem os limites (contidos paradoxalmente na própria idéia de livre-trânsito) espaciais do conceito: o cosmopolita e o cosmopolitismo são indissociáveis da experiência urbana, e mais especificamente da experiência da metrópole moderna. O cosmopolita não está propriamente interessado nas margens, na periferia, salvo quando essas forem parte constituinte da cidade (fascinação com submundos, com párias, com o lado proibido da cidade).

A metrópole é indubitavelmente o parâmetro básico para a composição da diversidade que define o cosmopolita e o cosmopolitismo. Nesse sentido, o conceito acaba estabelecendo uma hierarquia para as cidades modernas: as maiores cidades, conseqüentemente com uma maior gama de estilos de vida, essas com maior número de habitantes, com uma confluência de novidades e melhorias inéditas, seriam o território por excelência do cosmopolitismo. Portanto, se o conceito de cosmopolitismo denota uma desterritorialização do sujeito, ao mesmo tempo pressupõe paradoxalmente um Centro, o lugar onde esse sujeito vai estar mais exposto e aberto à multiplicidade que caracteriza o cosmopolitismo. 

Cosmopolitismo igualmente evoca uma dimensão temporal. Estão sempre implícitos aí a modernidade e alguns dos seus contrários: atraso, subdesenvolvimento, arcaísmo. O cosmopolitismo não somente alinha-se ao progresso e à abertura ao futuro, como se vê obrigado a inventar um certo passado ao qual se opor. O cosmopolita desenha seus percursos de acordo com uma crença não exatamente no progresso linear, mas numa sucessão interminável de novidades perpetuamente renováveis. Ainda, o cosmopolitismo opera por extremos: ou numa nostalgia artificial e quase mentirosa por um tipo de bucolismo que nunca existiu; ou invocando o menos puro dos deslumbramentos pela maquinaria, por imagens futuristas das tecnologias nascentes. Mais provavelmente, o imaginário cosmopolita está ligado à experiência metropolitana em todos os seus fascínios, prazeres e horrores.

Uma outra configuração do processo do cosmopolitismo tem a ver com as tensões temporais e mais intimamente com as contradições e oposições espaciais embutidas nessa relação com a metrópole, com o Centro. A saber, a emergência das noções de atraso, provincianismo, periferia implicam numa definição por parte de “atrasados”, “provincianos”, “periféricos” em relação ao “cosmopolita” e ao “Centro”. Se o cosmopolitismo é definido pelo acesso à diversidade metropolitana, por um Centro que fornece e legitima referências, a periferia teria que se definir então como o seu avesso. Essa definição acarreta o reconhecimento de certas impossibilidades virtuais, um oxímoro que condensa as preocupações mais centrais deste trabalho: o que se pode chamar de cosmopolitismo periférico.

Entretanto, neste reconhecimento vêm implícitas ao mesmo tempo a rejeição, a subversão e a reversão das impossibilidades contidas nesse oxímoro. Pois, se o indivíduo periférico pode afirmar-se como esse ser cosmopolita da definição tradicional, ele pode também operar no sentido de transformar a sua produção cultural local em parte constituinte do cânone universal. O conceito vai sendo modificado, pois, por uma dialética da modernidade, que traz à tona outros agentes que não o “cosmopolita” tradicional (aquele que tem que se referir ao(s) Centro(s), aquele que reverencia a(s) metrópole(s) moderna(s)). O cosmopolita periférico é um dos sujeitos principais da construção de uma nova instância do conceito de cosmopolitismo. É esse sujeito, então, que opera através de uma certa instabilidade do(s) Centro(s), estabelecendo novos centros, demarcando outros territórios.

Mesmo sem negar a inclinação centrífuga do cosmopolitismo (porque ele continua reverenciando e referindo-se ao(s) Centro(s)), o cosmopolita periférico incita reformulações, remapeamentos, relativizações. Esse momento do cosmopolitismo moderno poderia ser definido como o percurso de autodescoberta feito pelo intelectual das margens. Uma autodescoberta que pode levar ao estabelecimento das primeiras políticas da diferença. O cosmopolita periférico tenta definir a modernidade a partir de uma instância ambígua (ser e estar na periferia, desejar estar no Centro) e aponta justamente os elementos que fazem da periferia um modelo de modernidade alternativa (problemática, incompleta, contraditória). Ou seja, ele trabalha nos interstícios de uma realidade e tradição locais e de uma cultura urbana internacional, aspiracional e moderna.
Haveria então um outro momento cosmopolita relacionado precisamente com a transformação dessa política da diferença sugerida pelos “cosmopolitismos periféricos” em descentralização. As teorias pós-modernas e do pós-moderno delineiam outras dimensões para o processo do cosmopolitismo. Das características do pós-moderno algumas vão ser mais relevantes para o cosmopolitismo: valorização do periférico, do exótico, do excêntrico (principalmente na esfera cultural, através do multiculturalismo) e desestabilização da força centralizadora das metrópoles modernas.  Essa fase ex-cêntrica do cosmopolitismo pode ser vista então como conseqüência dos recentes desdobramentos do capitalismo tardio e do que se convencionou chamar de globalização. Admitindo certos aspectos “evolutivos” dessas manifestações do cosmopolitismo mencionadas até aqui, cabe ressaltar, contudo, que essas passagens, esses momentos cosmopolitas não são reflexos de um trajeto meramente linear onde se parte de um ponto para chegar a outro. As várias fases e acepções do cosmopolitismo cruzam-se, confundem-se, interpenetram-se não apenas entre si, mas em permanente contato com outros elementos de uma territorialização cultural. 

Tecnologia e cosmopolitismo

Além de estar inserido e conformado a uma nova economia das cidades (onde estão presentes novas formas de consumo, o fetiche, a moda etc), o cosmopolitismo, especialmente o do século XIX, é extremamente marcado pela relação com a tecnologia. A técnica é um dos instrumentos que o cosmopolita usa para olhar e conceber modernamente o mundo ao seu redor. O cosmopolita fascina-se pela Máquina, fetichizando-a (como com a cidade) e transformando-a em índice do progresso e imagem máxima do novo. Se a cidade moderna é o espaço onde atuam as paixões metropolitanas, os aparatos tecnológicos, as máquinas estabelecem uma espécie de percepção temporal para o cosmopolitismo. Como se a velocidade de novos meios de transporte ou dos motores das fábricas traduzisse o avanço e a rapidez da cultura de uma época. Símbolos de uma nova era, provas e portas de acesso ao progresso da humanidade, as máquinas também dão uma idéia de centralidade e controle (assim como a metrópole). A tecnologia diminui distâncias e tempos, faz a diferença mais próxima, define e redefine para o cidadão novos cenários a cada instante. Para o cosmopolita ela é quase tão importante quanto a metrópole, pois ela representa grande parte do repertório que o distingue de um provinciano. Contudo, o elo do cosmopolitismo com a tecnologia não tem nada de unidimensional. Não apenas um cego otimismo e a confiança absoluta no progresso predominam nesta relação. Pelo contrário até, já que para a grande maioria dos pensadores europeus a partir da metade do século XIX, progresso e decadência caminham lado a lado e estes dois conceitos estão claramente vinculados à noção de técnica.

A máquina pode fazer parte do mesmo universo sombrio daquelas ruelas e becos escuros freqüentados pelo flâneur. Embora o avanço da ciência signifique progresso, poder e liberação, a outra face dessa sociedade industrial e tecnológica pode levar à alienação, à mecanicização, à escravidão do homem. A mirada cosmopolita não ignora o lado obscuro da tecnologia, antes o considera como parte inalienável da paisagem e vivência da modernidade.

É indiscutível, todavia, que prevalece na perspectiva cosmopolita o caráter otimista frente à tecnologia. Primeiro pelo que ela oferece de ruptura com o passado (um passado campestre, primitivo, de isolamento), sendo um dos pilares de uma cultura de anti-retrogresso, mas principalmente porque ela é parte constituinte de um projeto de futuro para a sociedade, não apenas enquanto metrópole ou nação, mas como modelo de uma cosmópolis ideal. A tecnologia é para o cosmopolita um dos elementos básicos do presente e a potencialidade de um futuro melhor.

Se no cosmopolitismo há a consciência de que nem todas as virtualidades positivas da ciência podem ou não se realizar, apenas a mera sugestão de possibilidades é mais que um consolo. Portanto, não há o que estranhar em certas manifestações do discurso cosmopolita que guardam um curioso e excitado tom profético, como pode entrever-se em grande parte da produção artística das vanguardas do início do século XX.

O cosmopolitismo convencional é, em linhas gerais, uma celebração da artificialidade, da novidade e da diversidade, onde estão quase apagados os traços de nostalgia (e quando este aparece é uma nostalgia cínica, anacrônica, falsa) e tradição (no sentido mais “fiel” da palavra). E é isso que talvez faça com que muitos (como Spengler, por exemplo) vejam o Cosmopolitismo como sintoma de decadência cultural. Ao proclamar a primazia do artificial, o cosmopolitismo privilegia determinados aspectos “supérfluos” do repertório da técnica e da metrópole modernas: o cosmopolita da Belle Époque concebe um universo onde “frivolidades” como moda, aparições públicas, boas maneiras, gadgets domésticos, elementos ornamentais, rapidez de veículos etc, ocupam o centro de suas atenções. Ele se identifica aí com grande parte das aspirações burguesas, mas a sua predileção pela velocidade, pela diversidade, pela diferença o distancia deste. O cosmopolita é um burguês que chega antes, poder-se-ia dizer então.

Cosmopolitismo pós-moderno

Assim como o cosmopolitismo moderno está intrinsicamente associado ao desenvolvimento de um capitalismo industrial multinacional, o cosmopolitismo pós-moderno define-se pelo dispersamento do capital e pela emergência dos mercados transnacionais. Cada vez menos importa onde se está, mas como fazer fluir a informação para todos os lugares da maneira mais rápida possível. O cosmopolitismo pós-moderno, portanto, tem mais relação com o desenvolvimento tecnológico da mídia e de novas formas de comunicação do que com a urbanidade e o cotidiano metropolitano. A própria configuração urbana contemporânea vai sendo determinada pelo imaginário cultural e conceitual do pós-moderno.

As transformações do cenário urbano têm sua responsabilidade na redefinição do cosmopolitismo. Não é apenas a metrópole enquanto “centro do mundo” que deixa de vigorar, também desaparecem os “centros” das cidades, cada vez mais entregues ao abandono ou à transformação em museus urbanos Os subúrbios de classe média e os condomínios e bairros da classe alta tornam-se os núcleos dessa nova urbanidade descentralizada, da qual os shopping centers seriam a expressão máxima.

A cidade pós-moderna, de certo modo, também pode ser vista como a realização de parte dos prognósticos e desejos modernos de tecnologia, consumo, velocidade e simultaneidade. Entretanto, isso vai ter que ser levado até a própria destruição da idéia de metrópole (os “shoppings” também servem como agentes secundários deste processo) pelo menos no nível do imaginário cosmopolita. Paul Virilio descreve assim a passagem à urbanidade pós-moderna:

Se a metrópole possui ainda uma localização, uma posição geográfica, essa não se confunde mais com a antiga ruptura cidade/campo, tampouco com a oposição centro/periferia. A localização e a axialidade do dispositivo urbano perderam há muito sua evidência. Não somente o subúrbio provocou a dissolução que conhecemos, mas também a oposição ‘intramuros’, ‘extramuros’ se dissipou ela própria, com a revolução dos transportes e o desenvolvimento dos meios de comunicação e de telecomunicação, daí esta nebulosa conturbação de franjas urbanas.

A cidade pós-moderna enquanto núcleo urbano já não se configura como o fetiche mais recorrente para o cosmopolita contemporâneo, já não é a instância principal do seu roteiro de vícios e virtudes, não é mais lugar do “choque” e a sua “aura” já foi perdida há muito tempo. Se determinados espaços podem ainda ser considerados como território por excelência do cosmopolitismo pós-moderno (lugares, situações que ligam o indivíduo ao consumo e a uma rede mundial de informações e produtos), já não existe um flâneur como o do século XX e início do século XX, porque não existe mais a cidade onde flanar. As ruas e os bulevares onde o flâneur andava para “ser visto” tampouco existem. O espaço onde “ser visto” fragmentou-se em bares, restaurantes, lojas não do centro de uma metrópole em particular, mas do mundo inteiro. Mais além, é mais relevante “ser visto” através da telas (de televisão, cinema, computador). As imagens são mais valiosas para o cosmopolita pós-moderno que a realidade. Nesse sentido, cada vez mais se reafirmam as relações das identidades culturais com a tecnologia: a tecnologia é meio de representação mais direto de tais identidades.

Muito embora valha lembrar que nem todos os códigos sociais e culturais estabelecidos pelo consumo e cosmopolitismo modernos vão ser totalmente abandonados a partir dessa mudança. Há, contudo, uma fundamental transformação em termos quantitativos. Cada vez mais pessoas expostas à diversidade e à tecnologia em vários tipos e tamanhos de cidades diferentes fazem com que o cosmopolitismo torne-se uma condição quase geral do cidadão comum pós-moderno, mais do que um privilégio exclusivo da elite. Claro que a elite seria “mais cosmopolita” que a classe média, pelo menos em termos de consumo, diversidade e velocidade de informação. Como já foi dito antes, sendo basicamente dependente da estrutura econômica do capitalismo transnacional, o cosmopolitismo pós-moderno funciona - muito mais do que o cosmopolitismo moderno - de acordo com a flutuação dos mercados internacionais. Já não depende tanto das divisões entre países e suas principais metrópoles, e sim de como funciona o mercado de determinado núcleo social e urbano.

O mercado, então, vai ser o regulador desse cosmopolitismo - afinal não tão diferente do cosmopolitismo moderno, mas com um mercado que “sonha” muito além do capitalismo industrial do século XIX e primeira metade do século XX. Um dos principais fatores diferenciais do mercado pós-moderno é justamente a sua condição de pertencente ao capitalismo tardio ou capitalismo pós-industrial, ou ainda, capitalismo “global”. Inevitavelmente, a globalização da economia implica em profundas alterações na cultura mundial. Até porque a indústria cultural é parte constituinte do mercado, totalmente sujeita a suas regulações. Não apenas a divisão de trabalho vai se internacionalizar cada vez mais, como também a indústria cultural vê acontecer um processo semelhante em todas as suas instâncias.

A cultura de massas, tal como se conhece hoje, desenvolveu-se com feroz intensidade a partir do pós-guerra. Tecnologia e consumo passam a ser os vetores a partir do qual desenvolve-se a cultura em detrimento da divisão clássica entre cultura de elite, cultura de massas e cultura popular. Triunfa a lógica do capitalismo tardio em todas as esferas da sociedade, e ela não vai ser menos influente no campo da cultura. O homem pós-moderno acostumou-se a seu status de “consumidor”, também tomando como naturais as asserções sobre o “homem unidimensional” dos anos 60 de Marcuse. As observações de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural norte-americana no final dos anos 40 são constantemente reafirmadas pelos fatos sem provocar o mínimo de estranhamento, alarde ou preocupação. A indústria cultural passa a fazer parte de uma espécie de “ordem natural” do mundo pós-moderno.

De certa forma, a pós-modernidade toma ao pé-da-letra e leva a extremos uma interpretação conservadora da modernidade: a racionalização teleológica, a tecnologia e a modernização passando por cima dos ideais iluministas. As formas culturais produzidas nesse esquema têm que se adaptar ao declínio da arte tradicional e das hierarquias marcadas entre os diversos tipos de cultura. Mas isso o contemporâneo também é uma superação radical desse esquema, na medida em que emergem as políticas da diferença das quais falávamos anteriormente:

Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ela emerge em formas culturais não-canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito e cultura exteriormente aos objets d’art ou para além da canonização da “idéia” de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e de valor, freqüentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato de sobrevivência social.

Ou seja, por mais que as bases de um cosmopolitismo pós-moderno estejam fundadas sobre a maneira como se dá a relação entre a cultura, mercado e tecnologia numa economia globalizada, tal conceito, porém, não é um mero reflexo das novas tendências do consumo mundial. Em outra perspectiva o cosmopolitismo pode ser a expressão de uma retomada pós-moderna de certas questões colocadas pelo internacionalismo dos anos 50 e 60 (época da descolonização na África e Ásia, das revoluções estudantis, das guerrilhas marxistas): para além dos interesses econômicos que possa ter o multiculturalismo - em voga principalmente a partir do final dos anos 80 - para a hegemonia de certos oligopólios transnacionais de cultura, a progressiva abertura do mundo e das possibilidades tecnológicas às culturas periféricas denota uma vitória - mesmo que parcial - deste movimento.

O cosmopolitismo pós-moderno pode ser, além de uma condição inerente ao capitalismo transnacional (cada vez mais pessoas compartilhando experiências culturais, cada vez mais trocas entre culturas e produtos distintos em espaços e tempos simultâneos), uma postura política que urge pela des-hierarquização do mundo. Sem o enfoque no “personagem” cosmopolita (o “cidadão do mundo” do significado mais comum da palavra “cosmopolita”) com seus privilégios, com a deteriorização da idéia da metrópole como o centro do cosmopolitismo e com a definição de uma nova acepção do conceito que ultrapasse um relativismo cultural “absolutizado” e os modismos da “hibridização” e do pós-colonialismo, o cosmopolitismo pós-moderno pode ir em direção de uma política das diferenças.

Estendendo a dialética do cosmopolitismo, a pós-modernidade acrescenta uma dimensão interstiticial para a cultura do fim-de-século. O hibridismo - que antes seria uma característica inerente, mas negativa das culturas periféricas (colônias ou pós-colônias) - passa a ser uma marca geral da cultura contemporânea. A globalização seria, portanto, um conjunto de expressões de “fronteira”, um multilingüismo cultural.

Sem dúvida, as relações interculturais estabelecidas no final do século XX e início do século XXI vão muito além do (limitado) relativismo cultural proposto pela antropologia moderna. O cosmopolitismo pós-moderno, então, redimensiona a dualidade Mesmo / Outro na medida em que evidencia o terceiro termo na dialética do cosmopolitismo: um espaço onde se conjura simultaneamente o centro e a periferia, o Mesmo e o Outro, a modernidade e o arcaísmo.

Angela Prysthon é doutora pela Nottingham University e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE





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